O despertador toca bem cedinho, quando os raios do sol sequer apontaram no horizonte e ainda é possível molhar os pés com o orvalho da grama. É quando milhares de sudoestinos, homens e mulheres de todas as idades, levantam de suas camas, seja calor ou frio, com chuva ou tempo bom, e seguem para mais um dia de trabalho.
Assim começa a rotina dos produtores rurais dedicados à atividade leiteira em 29.832 propriedades distribuídas entre os 42 municípios que compõem a maior região produtora de leite do Paraná.
Com quase 30 mil unidades produtoras e um rebanho estimado de 322 mil vacas lactantes, o Sudoeste assumiu a posição de maior bacia leiteira do Estado, com 1,095 bilhão de litros de leite produzidos só no ano de 2013 - cerca de 25,2% da produção estadual -, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Departamento de Economia Rural (Deral).
Nesta estatística, estão produtores como Divonzir Moreschi e Valdir Picolotto. Divonzir é um pequeno produtor de Eneas Marques. Em uma propriedade de 11,5 hectares, tem um rebanho de 35 vacas em lactação, com produtividade média de 17 mil litros de leite mensais. Já Valdir mora em Vitorino e sua propriedade é de 120 hectares. Com um rebanho de 180 vacas em lactação confinadas no sistema free-stall, sua produtividade chega a 105 mil litros por mês.
Há 30 anos, havia um princípio de produção na região, mas o setor tomou força mesmo nos últimos 15 anos.
Apesar da significativa diferença de estruturas e tecnologia, a variação de produtividade é pequena. Mas numa coisa Divonzir e Valdir não se diferem: a dedicação à atividade e o sucesso na produção. "O segredo é produzir com qualidade e investir sempre, planejando a propriedade pensando no futuro", considera Valdir. "Nós apostamos no leite, depois de vários anos trabalhando com outras atividades, e conseguimos desenvolver bem o trabalho e a propriedade e melhorar a qualidade de vida. E o negócio vai tão bem que até meu filho, que trabalhava na cidade, voltou pra trabalhar com a gente", revela o produtor.Divonzir.
Era a 5ª prioridadedo agricultor
Atualmente, das 50 mil propriedades rurais existentes no Sudoeste, mais da metade tem como principal fonte de renda a atividade leiteira, segundo dados do Projeto Leite Sudoeste. Hoje, a atividade é tratada com o respeito que merece, mas num passado bem próximo o leite estava longe de ser a 'menina dos olhos' da região.
O zootecnista Simão Flores chegou ao Sudoeste em 1978. Formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), veio para Francisco Beltrão trabalhar na Emater. Ele relata que as lavouras de grãos predominavam na região e a suinocultura tinha uma grande escala comercial. Em 1986, teve início um levantamento sobre o leite. "Era a quinta prioridade dos agricultores. Antes do leite, a preferência deles era pela produção de soja, milho, feijão, suínos ou aves, e, só então, o leite. Para se ter uma ideia, atrás do leite só tinha pomares e peixes", conta Simão.
O setor leiteiro começou a tomar forma e ganhar força mesmo nos últimos 15 anos, segundo afirma o engenheiro agrônomo Christophe de Lannoy, da Cooperiguaçu, de Francisco Beltrão. "Uns 30 anos atrás já se tinha um princípio de produção, mas só nos últimos 15 anos que começou a crescer. Iniciou-se então um trabalho sobre qual era a melhor forma de se posicionar a respeito da bacia leiteira que estava iniciando."
Ele relata que não havia incentivos e as possibilidades de investimento eram muito restritas. "Os produtores tinham uma postura muito alheia ao investimento, havia uma limitação em investimentos, usavam animais rústicos, não se falava em genética. Mas já usavam alimentação com pastagem e silagem, muita coisa do que se faz hoje já se falava há 20 anos. Mas existia, e ainda existe, uma postura de resistência", afirma
Christophe.
Em 1983, o sistema cooperativo de produção de leite apareceu na região, pertencente a uma central de cooperativas do Oeste, conforme se recorda Simão. "Foi então criada a 'Linha do Leite', de Nova Prata do Iguaçu a Francisco Beltrão. Uma caminhonete recolhia 350 litros neste trajeto. Alguns anos depois conseguimos trazer pra cá o primeiro rebanho de vacas holandesas, que já tinham uma genética melhor. Mas, na época, não havia incentivo e nem atratividade nenhuma na produção", lembra o zootecnista.
A produtividade média na região nos anos 80 era de 3,5 litros por animal/dia. "A coisa começou mesmo a se desenvolver na região com o Fórum Intergovernamental da Sociedade, em 1989, no qual se discutiu as prioridades para a região e o leite começava a chamar atenção. Tinha mais de 80 entidades envolvidas, junto com as organizações da agricultura familiar, e o leite ficou em primeiro lugar nas prioridades. Mas até 1989, a produtividade de uma vaca era de 3,5 litros, 4 ou 7 litros quando já era mais bem alimentada. Então todos começaram a incentivar o negócio", afirma Simão.
Simão Flores, zootecnista da Emater e incentivador da produção leiteira no Sudoeste.
Via Tecnológica do Leite: um divisor de águas
O caminho entre a produtividade de 3,5 litros por dia para os 30 litros/dia possíveis nos atuais sistemas de manejo e produção não foi fácil e exigiu muito empenho. Simão conta que após a estruturação do Serviço de Aprendizagem Rural (Senar-PR), em 1993, e a parceria efetiva com instituições como a Emater, o trabalho começou a se desenvolver de forma mais efetiva. Dezenas de cursos passaram a ser ofertados na região e a produção de leite entrou num processo de profissionalização. "A Emater começou a focar no leite, a produtividade passou a avançar para sete, oito, nove, dez e onze litros de leite por dia. Nesse meio tempo, a pesquisa evoluiu, novas formas de manejo, novos tratos, genética, tecnologia", destaca Simão Flores.
Com tantas alternativas e incentivos, criou-se uma condição favorável para a produção de leite, com bons índices e resultados. Até que, em 2005, realizou-se a 1ª Via Tecnológica do Leite. "Foi um divisor de águas. Tivemos palestras importantes com médicos veterinários, pessoal das universidades, eles abordaram tendências de mercado e questões sobre qualidade do leite. Depois disso, as universidades foram dando mais atenção para o setor, surgiram laboratórios especializados nos cursos e isso tudo facilitou muito o trabalho", afirma o zootecnista da Emater.
Simão ainda menciona o surgimento do Programa de Inseminação Artificial (PIA), adotado pelos municípios da região e que proporcionou um significativo avanço no melhoramento genético dos rebanhos. "Com esse programa, ela evoluiu e já está num patamar muito bom na região, tanto com animais cruzados como com animais puros de cada raça. Hoje o produtor tem um botijão em conjunto com a associação, ou pela prefeitura, e ele é o inseminador ou um vizinho que mora perto. As prefeituras têm espalhado botijão nas comunidades e o pessoal se vira, tem sido um bom caminho", acredita.
A excelente faixa climática em que a região se encontra e o "capital social" são outros fatores importantes apontados por Simão Flores. "A faixa climática dá conforto para a vaca. Apesar de bastante chuva, que cria umidade e barro, há maneiras para se controlar esses problemas. E nós temos o capital social, nosso produtor, que tem tradição em leite, uma coisa familiar, e isso é o lado mais rico da região. Mas ainda temos muito a fazer para conservar o título de maior bacia leiteira", afirma.
Leite é o novo ciclo
Leonardo Garcia, presidentedo Sindicato Rural: "Leite é o novo ciclo do Sudoeste".
Para Leonardo Garcia, médico veterinário e presidente do Sindicato Rural de Francisco Beltrão, a pecuária de leite marca o novo ciclo do agronegócio do Sudoeste. "Assim como já houve a época da madeira, dos suínos, do feijão, acredito que hoje o leite seja o novo ciclo. A região ganhou força, conta hoje com a presença de empresas consolidadas no segmento. A atividade ajudou a desenvolver a região e garante uma boa renda para o produtor", destaca.
A atividade que iniciou como complemento de renda já se tornou exclusiva em muitas propriedades, que se profissionalizaram no setor. O zootecnista Simão Flores defende que o produtor passou "a dominar a atividade para se tornar profissional". Além disso, segundo ele, a possibilidade de ampliar a produtividade e a remuneração razoável contribuiu para esta decisão. "O produtor percebeu a condição de viver melhor mensalmente e acabou optando por focar em uma só atividade para desenvolvê-la melhor. Virou profissional do leite, especialista em produzir leite", classifica.
Quem optou por encarar e se dedicar teve de acompanhar a evolução do setor e investir. Segundo o técnico Edson Azeredo, da Ater Itapejara, empresa que desenvolve projetos de custeio para a cooperativa Cresol, é possível perceber maturidade na atitude dos produtores de leite, que planejam investimentos graduais e vão melhorando suas estruturas e sistemas aos poucos. "Investem primeiro nos estábulos, depois compram uma ordenhadeira melhor, aumentam a capacidade de ordenha, se preocupam com a armazenagem e resfriamento, enfim, estão se aperfeiçoando a cada dia. Os que não investem, aos poucos estão abandonando a atividade, migrando para outros setores", comenta o técnico.
Simão ainda relaciona a rentabilidade do setor e afirma que, apesar dos custos elevados de alguns sistemas, a atividade ainda é atrativa, mas é preciso planejamento. "Ela é rentável. Mas é preciso observar alguns detalhes. A questão da nutrição, de você adequar a alimentação para cada animal conforme seu resultado, porque trabalhar com a produtividade de 18 a 24 litros viabiliza economicamente a propriedade. Nessa faixa, o produtor terá um bom rendimento, mas é preciso ficar de olho em tudo, porque às vezes alguns custos podem ser mascarados. A base do produtor é o solo fértil, pasto fértil bem manejado com qualidade e a partir daí a suplementação de grãos é um sucesso."
Crescimento deve ser mais lento, mas contínuo
Não são necessárias pesquisas ou gráficos para afirmar que a atividade leiteira ajudou a melhorar a vida no campo, principalmente nas pequenas propriedades da agricultura familiar. É só visitar o interior e observar. A atividade garantiu a entrada de recursos periodicamente, o que permitiu ao agricultor planejar e investir mais.
Com quase 20 anos de produção leiteira na região, a presença da segunda geração começa a ser mais efetiva nas propriedades. E a expectativa é ter o setor ainda mais profissionalizado, conforme destaca Simão Flores. "Esse pessoal que está assumindo tem uma faixa entre 20 a 40 anos de idade, é um pessoal já num nível bem preparado e que é mais adepto à tecnologia e conta com as parcerias de universidades, que investem muito em pesquisas, e várias instituições e entidades."
Para alguns, o volume de leite produzido pode ser muito maior do que realmente mostram as estatísticas e ainda se acredita na possibilidade de o setor expandir mais. "Tem muito leite escondido por aí, como costumamos dizer. Porque tem leite comercializado na informalidade, para o vizinho ou para entrega na cidade, como é típico de cidades pequenas, e ainda para a produção de um queijinho tradicional pra família. E, avaliando a região, acredito que é possível, sim, ampliar mais a produção, há capacidade para isso e a genética, a tecnologia e os sistemas de manejo continuam evoluindo", relata Leonardo Garcia, do Sindicato Rural de Beltrão.
Ronei Volpi acredita que ritmo de
crescimento deva ser mais calmo a partir de agora.
O médico veterinário Ronei Volpi, presidente do Conseleite/PR e coordenador da Aliança Láctea Sul Brasileira, acredita que a curva de crescimento do setor seja um pouco mais lenta a partir de agora, mas reforça que não deve deixar de crescer. "Os investimentos na base, na propriedade rural, são de médio prazo. O produtor investiu em animais, alimentação e sanidade e não vai interromper isso tudo de uma hora pra outra. Esse crescimento continua acontecendo. O que vejo é que precisa ganhar em qualidade, em escala de produção dentro da propriedade", analisa.
Dados apresentados por Ronei em recente palestra ao Projeto Leite Sudoeste destacaram que o Paraná cresceu 105% na produção leiteira nos últimos dez anos. Ele ainda ressaltou que o Sudoeste produz o dobro do leite produzido na região mais tecnificada do Paraná, que é Castro e Campos Gerais, com atuais 582 milhões de litros por ano. "O Sudoeste tem uma parcela grande de produtores com produção diária inferior a 50 litros. Isso é economicamente insustentável e é preciso crescer. Certamente, daqui dez anos o número de produtores será bem menor, mas o volume de produção deve ser ainda mais significativo na região. Precisamos trabalhar no desenvolvimento industrial, para ganharmos mercados mais distantes, explorando mais o Brasil e o exterior", projeta.
Créditos: Jornal de Beltrão-(Foto: Família Moreschi/Jornal de Beltrão)