Um antiparasitário usado há décadas para combater helmintos, protozoários, rotavírus e norovírus está entre as muitas terapias estudadas para tratar também pacientes com Covid-19. Contudo, embora a Nitazoxanida — comercializada no Brasil com o nome Annita — tenha se popularizado em 2020 devido a esse potencial, ainda é cedo para afirmar que ela funciona contra o coronavírus Sars-CoV-2.
Isso porque são poucos os estudos, sobretudo os que envolvem humanos, que já tiveram resultados aprovados para divulgação em periódicos científicos, de forma que não há uma quantidade suficiente de dados confiáveis que atestem o uso seguro e comprovadamente eficaz do remédio nesses casos.
Por isso, pesquisadores seguem investigando uma possível eficácia da droga contra o novo coronavírus. No último dia 26 de junho, cientistas brasileiros compartilharam os resultados de um estudo de fase 2 concluído em 50 pacientes com quadros moderados da doença. Publicados na renomada revista científica The Lancet, os dados são avaliados pelos autores como “motivadores” para avançar com a etapa de fase 3, que deverá envolver 400 indivíduos.
Os voluntários foram acompanhados ao longo de três semanas, durante as quais foram divididos em dois grupos: 25 pacientes receberam 600 mg de nitazoxanida duas vezes ao dia por sete dias consecutivos, e os outros 25 foram tratados com um placebo.
Ao final do ensaio clínico piloto, duplo-cego e randomizado (modelo considerado padrão-ouro para avaliar a eficácia de medicamentos), foram observadas três diferenças estatisticamente significativas entre o grupo que recebeu o placebo e aqueles tratados com o remédio: os voluntários medicados ficaram menos tempo internados, negativaram mais rápido em exames RT-PCR e tiveram maior redução de marcadores inflamatórios associados à Covid-19.
“Em estudos muito pequenos, a gente não espera ver diferenças significativas entre os desfechos clínicos do grupo que recebeu o placebo e o que recebeu o remédio, mas acabamos vendo algumas diferenças importantes nesse estudo”, avalia Ricardo Diaz, professor de infectologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor correspondente da pesquisa.
O médico ressalta, no entanto, que ensaios clínicos maiores ainda são necessários para atestar os possíveis benefícios do fármaco em casos moderados de Covid-19 — portanto, ele não deve ser consumido nem prescrito para tratar a doença. "Em um estudo maior, muitas vezes podemos ter surpresas: o que parecia bom pode ficar ruim e, ao mesmo tempo, o que parecia mais ou menos bom pode ficar muito bom, precisamos analisar", pondera Diaz, em entrevista a GALILEU.
Como foi feito o estudo
A pesquisa foi realizada com pacientes internados com quadros moderados de Covid-19 em seis hospitais do estado de São Paulo: Instituto do Coração-Incor, Beneficência Portuguesa, Hospital Vera Cruz, SPDM/Hospital Geral de Guarulhos, Hospital Municipal Dr. Francisco Moran e Hospital Prevent Senior. O estudo foi financiado pela farmacêutica brasileira Farmoquimica (FQM), e alguns reagentes usados em laboratório foram pagos com verbas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Antes de dar início à fase clínica dos testes, os pesquisadores concluíram que, em laboratório, a nitazoxanida havia demonstrado capacidade de inativar o vírus Sars-CoV-2 sem causar danos às células. Os resultados foram obtidos em testes realizados com células Vero, utilizadas para cultivar vírus na produção de medicamentos e vacinas. Os experimentos pré-clínicos foram conduzidos no Laboratório de Retrovirologia da Unifesp, instituição à qual estão vinculados dez dos 17 autores do estudo.
“Depois dos testes in vitro, resolvemos desenhar o estudo clínico para ver se isso poderia se concretizar de uma forma que não fizesse mal para as pessoas, por isso recrutamos uma quantidade pequena de pacientes”, explica Diaz. “Também tínhamos que usar uma dose que não fosse suficiente para matar protozoários, helmintos e amebas no intestino, mas que tivesse uma concentração maior nos pulmões, coração e fígado, então usamos a dose mínima necessária para o medicamento se distribuir um pouco mais no corpo de forma segura”.
Resultados
A fim de avaliar a carga viral dos 50 pacientes ao longo das três semanas de acompanhamento, foram realizados exames RT-PCR nos dias 1, 4, 7, 14 e 21 da pesquisa. Variáveis como tempo de internação, mortalidade hospitalar, necessidade de ventilação mecânica e marcadores inflamatórios associados à Covid-19 também foram alvos da investigação.
A distribuição das características entre as duas turmas foi considerada equilibrada — havia, por exemplo, sete homens e 18 mulheres entre os que receberam o remédio, contra oito homens e 17 mulheres no grupo que serviu de controle. Entre os voluntários, 54% tinham menos de 65 anos de idade e 46% estavam acima dessa faixa etária. A prevalência de comorbidades era igual entre os pacientes, que estavam internados com insuficiência respiratória leve entre os dias 20 de maio e 21 de setembro de 2020.
Já os resultados dos exames RT-PCR foram significativamente diferentes entre os dois grupos ao longo do tempo: no dia 21, todos os pacientes tratados com nitazoxanida testaram negativo para o novo coronavírus, contra 78,9% do grupo controle. Enquanto o tempo médio de alta hospitalar no segundo grupo foi de 14 dias, entre os que receberam o fármaco esse número foi de seis dias.
Não foram observadas diferenças estatisticamente relevantes entre o número de óbitos nos dois grupos — dois entre os que receberam o remédio e seis nos que tomaram placebo —, mas o estudo afirma que “a diferença é considerada clinicamente relevante e uma tendência a ser considerada em estudos com maior tamanho amostral”. De forma semelhante, o número de participantes que necessitaram de ventilação mecânica invasiva, embora não estatisticamente significativo, foi maior no grupo controle (6 contra 2).
Os pesquisadores também perceberam que o processo inflamatório desencadeado pela Covid-19 diminuiu de forma mais acentuada no grupo tratado com a nitazoxanida, o que foi observado pela queda em marcadores como d-dímero (relacionado à coagulação), TNF, IL-6 e IL-8 (interleucinas que provocam a chamada “tempestade inflamatória”), além de marcadores de ativação de linfócitos. Esses últimos, segundo os autores, foram analisados pela primeira vez em um estudo sobre Covid-19.
“Toda ativação celular é ruim porque leva à morte dos linfócitos [células responsáveis pela defesa do corpo], e o estudo mostrou que esse marcador foi muito ativado no dia 1, mas estava igual nos dois grupos. Conforme o tempo foi passando, a diminuição da ativação celular foi maior entre quem tomou o medicamento, o que em sua maioria foi significativo”, relata Diaz, cujos trabalhos de mestrado e doutorado tratam da ação desses marcadores em pacientes com vírus das hepatites B, C e D.
Como age a nitazoxanida?
Embora inicialmente desenvolvida para o tratamento de doenças causadas por protozoários, dados da literatura científica mostram que a nitazoxanida também é capaz de inibir uma grande quantidade de vírus patogênicos in vitro, como o ebola e o Mers-CoV, da família dos coronavírus.
Um ensaio clínico norte-americano publicado no The Lancet em 2014 também revelou que o composto pode diminuir a duração dos sintomas da gripe, o que sugere uma possível ação contra o vírus influenza. Entre 2016 e 2017, os resultados desse estudo despertaram o interesse de Diaz e outros virologistas da Unifesp em replicar a pesquisa no Brasil. Por motivos técnicos, os pesquisadores não conseguiram avançar com a ideia, que só seria retomada no final de 2019, quando surgiram os primeiros casos de Covid-19 na China. Mas aí, em vez de analisar a ação do fármaco em vírus que causam gripe e dengue — dois focos do projeto inicial —, o grupo decidiu redirecionar os testes para o Sars-CoV-2.
Segundo Diaz, em estudos anteriores com humanos, o fármaco já demonstrou ser capaz de induzir a produção de interferons, proteínas com alta atividade antiviral capazes de impedir a entrada de vírus nas células. Pesquisas realizadas antes da pandemia também sugerem que, em roedores, o composto freou a produção de interleucina 6, uma das substâncias inflamatórias responsáveis pelo agravamento da Covid-19.
“Em estudos com outros vírus, a nitazoxanida mostrou que consegue impedir a entrada do vírus nas células, algo que a ivermectina e a hidroxicloroquina também fazem com o coronavírus in vitro, mas a primeira não funcionou na prática e a segunda, não só não funcionou, como infelizmente matou muitas pessoas”, avalia o infectologista. “No caso da nitazoxanida, só vamos esclarecer isso em um estudo maior”.
Eventos adversos
No estudo brasileiro, foram observados um total de 36 eventos adversos, sendo 14 entre o grupo que recebeu o medicamento e 22 no grupo controle. Segundo os pesquisadores, a maior proporção dessas reações — como elevação de enzimas hepáticas e dor de cabeça — entre o grupo que não foi tratado com o composto pode ser atribuída ao dano causado pela Covid-19 em vários órgãos e tecidos, já que o placebo é uma substância que não causa efeitos colaterais. “Se você tem mais eventos adversos no grupo placebo, é porque você está mitigando os sintomas da doença no grupo que recebeu o remédio", analisa Diaz.
Mas a equipe pondera que a amostra pequena de pacientes pode ter ofuscado a incidência de reações adversas menos frequentes, o que deverá ser melhor compreendido no próximo estágio da pesquisa. Segundo Vinicius Fontanesi Blum, médico da FQM responsável pelos ensaios clínicos e preceptor de Gastroenterologia da Unifesp, a equipe já recebeu autorização para dar início à fase 3 e o processo de recrutamento se encontra em andamento.
Além de hospitais espalhados pelo Brasil, a próxima etapa deverá contar ainda com a colaboração de centros na Argentina.
Ceticismo é preciso
Para Blum, os achados devem ser interpretados sob as lentes da ciência: com otimismo e, na mesma proporção, ceticismo. Isso porque, apesar dos resultados promissores entre o pequeno grupo de pacientes, a etapa com maior número de voluntários é crucial para atestar a segurança e eficácia de qualquer medicamento. A expectativa é que ela seja concluída ainda nos próximos três meses.
“Como pesquisadores, a nossa posição é muito clara: a gente não pode autorizar o uso oficial, o uso em bula, o uso formal ou em protocolo de um medicamento que, embora seja conhecido e esteja no Brasil há mais de 15 anos, ainda está em teste para a Covid-19”, alerta Blum. “Isso seria assumir riscos que ainda não estão totalmente claros”.
Créditos: Galileu Foto: Reprodução internet ilustrativa