20/04/2021
A luta contra a Covid-19 tem rosto de mulher

O Hospital Regional do Sudoeste (HRS) se preparava para completar 10 anos quando a diretora Cintia Jaqueline Ramos foi informada que o hospital seria referência para casos de covid-19 no Sudoeste do Paraná. Ainda não havia notificações na região, mas o alerta era dado e já movimentava a unidade, que precisaria passar por adaptações para receber possíveis pacientes positivados.

Era fevereiro de 2020. Na época, Cintia lembrava dos grandes momentos vividos na sua carreira e aqueles que marcaram a história do HRS na década. A pandemia de H1N1, em 2019, que deixou uma única vítima em Francisco Beltrão, era citada com dor junto da epidemia de dengue, em 2012, quando 600 casos confirmados da doença foram registrados, logo após ao descredenciamento da Policlínica São Vicente de Paula do Sistema Único de Saúde (SUS). A experiência de ter passado por uma epidemia e por uma pandemia davam forças a Cintia. Ela sentia que tinha experiência para encarar a nova pandemia, só não sabia como seria essa luta.

 

 

Cintia é uma mulher de estatura baixa, corpo magro, mas estruturado, e com cabelos negros e longos. De postura sempre ereta e cabeça erguida, ela carrega um pulso firme que não a faz parar e que também não deixa ninguém parar. É apaixonada por moda, e sempre aparece bem arrumada. Economista de formação, carrega no currículo ainda a especialização em gestão em sistemas de saúde pública e gestão empresarial e trabalha como funcionária pública há 27 anos. Em 2019 assumiu a direção do HRS e se tornou a segunda mulher à frente do maior hospital da região Sudoeste (a primeira foi Nádia Zanella, atual chefe da 8ª Regional de Saúde). Apesar de todo esse histórico, seu jeito humilde e um tanto tímido lhe conferem um atributo humano que lhe credencia honra e respeito.

Cintia Jaqueline Ramos, responsável pelo maior hospital do Sudoeste do Paraná.

 

Logo que assumiu a grande unidade, uma das primeiras medidas foi melhorar a estrutura do lugar. Renovando a pintura, aplicando tratamento de piso e implementando novos mobiliários. O sonho, estampando em um banner na sala da diretora, é a obra de ampliação do hospital, de 2.300 m², que abrigará o centro de hemodinâmica, dez novos leitos de UTI e mais áreas de apoio. A expectativa era de que ainda em 2020 o projeto fosse autorizado e as verbas repassadas para seu começo. Mas a única coisa materializada foi a ampliação de leitos dentro da estrutura já existente. Isso, para acolher os casos de Covid-19 que começaram a chegar a partir de março. O sonho ficou para depois.

Em todo o hospital, 75% da força de trabalho é composta por mulheres. O número se repete em outros lugares do município, que tem na força feminina o rosto de quem desde o ano passado encarou a luta contra a Covid. Essa presença, segundo as próprias mulheres, é fundamental por atributos sociais carregados pelo feminino: a atenção, a força e o não desistir.

Com base em dados do Censo de 2000, a presença das mulheres no setor saúde chega a quase 70% do total, sendo 62% para as categorias de nível superior e 74% de nível médio e elementar. Elas chegam a ter mais de 90% de participação nas áreas de Fonoaudiologia, Nutrição e Serviço Social. Em outras, como Enfermagem e Psicologia, são acima de 80%. Entre os médicos, representam uma estimativa mais baixa, de 36%. Mas são estas trabalhadoras que provêm atendimento e cuidado aos doentes na linha de frente da batalha contra o coronavírus, colocando suas próprias vidas (e as de sua família) em risco, sobretudo diante de uma pandemia que sofre com a falta de vacinas e o negacionismo.

Um vírus novo
Nádia Daniela Krassman e Juliane Galvan Matiuzzi são colegas do Samu, em Francisco Beltrão. Ambas decidiram desde cedo que entrariam no serviço de saúde. Elas são parecidas em suas formas seguras de falar e na empatia que carregam ao falar sobre o atendimento aos pacientes, mas só se conheceram no árduo serviço de combate à pandemia, no ano passado.

Nadia, de 39 anos, decidiu ainda jovem que iria seguir uma carreira militar. Ela vem de uma família de professoras, onde as mulheres exercem um forte papel de cuidado. Por querer romper esse ciclo, sonhava em ousar, o que teve rumos diferentes após um grave acidente sofrido pelo marido, em 2002. O casal vivia no Mato Grosso, na época, e após o acidente retornaram ao Sudoeste do Paraná. Um tanto sem foco, trabalhou como costureira, alimentando o antigo sonho, até prestar concurso para agente de saúde em Marmeleiro. Foram cinco anos lutando contra endemias e conhecendo os problemas causados por vírus junto às populações, de casa em casa. Mas Nadia queria mais. Em 2009 cursou auxiliar de enfermagem e foi aprovada no concurso, também de Marmeleiro. De agente de saúde se tornou “a tia da vacina”. Depois de um novo concurso, em 2018, ela conseguiu chegar ao Samu.

Nádia Daniela Krassman 

Juliane Galvan Matiuzzi

 

“Não é a carreira militar que eu pensava, pois queria ir pro lado do bombeiro, algo assim, mas é ainda melhor: é o serviço de primeiros socorros pelo qual tenho uma paixão imensa”, diz Nadia.
O amor à profissão é compartilhado por Juliane, colega que chegou ao Samu de Francisco Beltrão no ano passado. Após um ano trabalhando no hospital em Dois Vizinhos, ela conseguiu a transferência para o Samu, e chegou para enfrentar o pior momento da equipe: a luta contra a covid.

Enquanto Nadia estava afastada devido a uma cirurgia, Juliane já estava no trabalho com a equipe. O medo nasceu nos primeiros momentos da nova rotina, que incluíam uma preparação antes não necessária. Agora era preciso que uma ambulância sempre estivesse disponível na base e que, após cada atendimento, os carros fossem desinfectados – um processo moroso que poderia levar de meia hora a 45 minutos. A paramentação também era diferente. Além do macacão azul, feito em um tecido grosso, sempre usado nos atendimentos, a equipe se escondia com capotes, uma máscara facial grossa, sobreposta por um escudo facial transparente e luvas: às vezes até cinco eram utilizadas pelos profissionais.

No inverno, apesar de toda paramentação parecer aquecer, a dificuldade estava nas janelas, deixadas abertas para o transporte dos pacientes.

Mas para além do trabalho, a rotina em casa também exigia cuidados. Juliane se afastou da família. Mais de uma vez sentiu o temor de passar o vírus aos familiares que não moravam na mesma casa, além de que, em toda chegada a sua residência, mantinha protocolos de higiene exaustivos.

Nadia voltou da cirurgia em maio. Em agosto, a região viveu a primeira forte onda da Covid, mas nada comparado com a situação caótica vivida em dezembro, quando, pela primeira vez, o Sudoeste passou a ter superlotação de leitos e fila de espera, fazendo a equipe trabalhar como nunca antes, o que se repetiu em fevereiro e março.

Era necessário buscar os pacientes na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e levá-los aos hospitais da região onde houvesse vagas. Juliane e Nadia trabalham em uma ambulância básica, que não tem respiradores, então eram levados os casos leves da covid, além de ser usada para outros atendimentos – que caíram drasticamente. Nesses momentos, elas buscavam levar a dignidade para aqueles que já estavam isolados e iam para mais longe.


“A gente sabia que, a partir do momento que o paciente internou no hospital, ele não ia ter mais contato com o meio externo, sem ser por rede social. Então eu ficava pensando como que ia ser. Geralmente, quando você vai transferir um paciente de um lugar pro outro, a família é comunicada, e graças a Deus, a maioria das vezes, a família sempre estava ali, aguardando. Por exemplo, na UPA, a família sempre estava lá esperando o paciente sair e ser acomodado dentro da ambulância. Então uma coisa que eu sempre fiz desde o começo foi deixar eles [familiares] dizer um oi, tchau, boa sorte, vai com Deus, vai dar tudo certo, sabe? Porque você nunca sabia o que iria acontecer dali pra frente”, conta Nadia, que se emociona ao lembrar de um idoso transferido para Pranchita, ao qual tentou passar uma imagem resistente.

Em dezembro, a situação crítica de espera os fez assistir o já noticiado em outros lugares do Brasil e que denunciava a gravidade da pandemia. Na UPA, mais de uma pessoa aguardava em macas a disponibilidade de leitos e, quando era vagado, os profissionais da unidade precisavam escolher para quem seria a prioridade. “Já aconteceu de você saber que aquele senhorzinho ali, a chance de sobrevida era menor, e aí o médico optou por encaminhar outro paciente, é bem difícil”, relembra Nádia, com dor.

A necessidade de leitos
Quando um paciente precisa ser transferido, o leito é gerenciado a partir da central de regulamentação de leitos, um serviço do Estado, que busca entre os hospitais da região um local para a internação. Frequentemente os pacientes são levados para unidades de saúde dos municípios de Palmas, Pranchita, Pato Branco e no Hospital Regional do Sudoeste, em Francisco Beltrão. Devido à superlotação, ambulâncias também precisaram se destacar a Cascavel, viagem mais longa nesse processo.

Só no Hospital Regional do Sudoeste, segundo a diretora Cintia, de março de 2020, quando o primeiro paciente com caso confirmado da doença foi internado, até fevereiro deste ano, 650 pessoas foram internadas com a doença, sendo 10 crianças.

Em dezembro, devido ao aumento de casos, o gabinete de crise montado dentro do HRS precisou adaptar pelo menos dois leitos a mais para atender a demanda – que ainda assim eram insuficientes.
Além disso, aprender a gerenciar o leito e os óbitos por covid, que possuem um protocolo próprio, foram desafiadores para Cintia e para a equipe. Sobretudo pela incompreensão do último adeus. Isso porque pacientes que morrem por covid-19 precisam ser sepultados em até duas horas, para evitar contaminação. Velórios também foram proibidos nesses casos. Quando ocorre óbito por suspeita, o protocolo também deve ser seguido, ainda que o exame, tardio, mostre que a vítima não morreu em decorrência da doença.

Do lado de fora dos muros do hospital, onde profissionais sobrecarregados dependiam de ajuda psicológica para seguir, movimentos negacionistas e que minimizavam a pandemia contribuíam para a sobrecarga do setor. A instituição do Toque de Recolher também fez com que um empresário chamasse Cintia pelo celular, cobrando que ela revesse a medida. “[Ele] me mandou uma mensagem desabafando que eles também precisavam trabalhar porque estavam contemplados dentro do decreto que não poderia abrir atividades noturnas. Eu, respeitosamente, expliquei que, infelizmente, essa parte é dos decretos não cabe a nós, prestadores hospitalares, e só cabe a nós fazer assistência do paciente, infelizmente, quando já está doente”, lembra Cintia, dizendo que foi entendia pelo empresário, ao qual não identificou para a reportagem.

Créditos: Jornal de Beltrão - Foto:Reprodução

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